Hoje amanheci com
aquela ideia do professor Darcy Ribeiro de indignar-se ao invés de resignar-se.
Vejo nesta atitude alguma coisa altamente transformadora. Não há dúvidas de que
este grande personagem da história brasileira nos deixou um grande legado de transformação
sociocultural e, sobretudo, política, apesar de eu tanto discordar deste grande
professor em termos teóricos. E ele reagia de maneira indignada quando o contestávamos,
e enveredava por explicações efusivas na defesa de seus argumentos. Creio,
portanto, que seus grandes feitos devem-se muito a esta atitude indignada, de
não aceitar este mundo de modo passivo e agir sempre no sentido da
transformação.
Que saudade da
professora Berta, quando sorria carinhosamente da minha inquietação diante do
aprendizado. Aqueles olhinhos da Nise olhando por trás daquelas lentes grossas
e também sorrindo da minha inquietação, dizendo com afeto: “Leozinho, eles são
apenas cartesianos...”. O olhar distante e sorridente do Ulpiano, quando lhe
perguntava acerca da intensidade, da profundidade e da velocidade do
pensamento. E ele respondia com palavras simples, que tão somente suscitavam mais
e mais indagações: “etologia, Leonardo, etologia...” O respeito e a seriedade de
um Dom Estevão, quando me ajudava nas minhas pesquisas, apesar dos temas serem
tão adversos aos seus próprios interesses. Que coisa maravilhosa na vida ter
tido tão bons professores, desde a tia (de verdadeiro parentesco!) que me
alfabetizou, aos velhos índios que conheci e tantos outros, que não mais faziam
senão libertar minha mente, me mostrando a Liberdade que podemos auferir nos
nossos próprios pensamentos.
Ora, quer me parecer
que isto é muito natural, esta “coisa” da transformação. O que é a Natureza
senão permanente transformação? Que sentido tem a vida quando não muda
permanentemente? O compasso ternário da dialética de Hegel / Marx, que começa
lá atrás, antes do Sócrates. O tão antigo Eterno Retorno do Nietzsche, que teve
a coragem de esculachar mais de dois mil anos de filosofia. Como é alentador
ver o brilho nos olhos dos meus alunos quando lhes falo do Ser em Parmênides e
do Vir-a-Ser em Heráclito. Que transformações poderão estar ocorrendo naquelas
mentes jovens quando lhes proponho tais pensamentos? Ora, se este último dizia
que “tudo é um”, o que é, afinal, a tão propalada Criação, senão uma transformação
radical do cosmos? Ou do vazio? Ou do caos? Não seria a Criação um Devir
permanente? Mas com que facilidade por aqui, alguns facebookianos falam de Deus,
ou mesmo do Amor, quando é certo que nem um nem outro, por entidades que são, jamais
poderão responder. Quando, possivelmente, os estão procurando em si mesmos ou à
sua volta. Ai, que coisa mais chata e piegas o tal do "beijo no coração". Francamente,
não há nada de transformador nisso.
Tantas que são as
trocentas mensagens que caem a cada segundo nos nossos feeds de notícias, que, em sua maioria, de nada servem para alimentar as mais
pobre almas, senão embriagá-las com doce simbologia. Em sua maioria, carregam certo
ranço de auto-ajuda, com a pretensão de proporcionar ao outro algum bem, quando,
talvez, não passam de uma busca desesperada de fazer o bem a si mesmo. Um modo
subliminar de mentir a si mesmo, de escamotear sua própria falta de atitude,
seus medos e suas frustrações, uma completa falta de indignação. Como que
varrendo para debaixo do tapete um enorme cagaço de viver. Mandam pro ar aquela
imagem ou texto bonitinho, apropriando-se de maneira indébita das sabedorias alheias,
de grandes seres humanos como o Chico Xavier, Madre Teresa, Gandhi etc., quando
não atribuem ao Freud, ao Nietzsche, ao Platão ou ao Aristóteles etc., frases
que eles jamais expressaram. Tornamo-nos escravos dos nossos tão nobres valores
e os cultivamos em demonstrações públicas, sem nos dar conta que estamos
confundindo as palavras com as coisas.
O teclado é como o
papel. Ele aceita tudo sem contestar. Que tipos de seres viventes estamos nos
transformando, que sentamos diante de uma telinha e mandamos ideias vazias a
esmo? Que recebemos tão passivamente tantas informações falsas e nos emocionamos
e, até, por vezes, nos indignamos com elas. Mas não será uma espécie de
indignação controlada, reificadora e a serviço do establishment? Creio que os seres humanos nunca mentiram tanto, a
si mesmos e a outrem, depois do advento da Internet. Nunca se formaram
pensadores tão estéreis, depois que passaram a se comunicar através das redes
de relacionamento. Talvez, o ser humano não tenha vivido tão sem dignidade como
nos dias de hoje. E toda essa dominação é simbólica, combinada a mecanismos
materiais informados pela sociedade de consumo. Marx se surpreenderia com os
níveis de mercantilização a que chegaram as sociedades atuais. Compra-se corpos
para o sexo como quem compra roupa ou comida. As vaidades e as aparências se sobrepõem
a qualquer conteúdo. Tudo é mercadoria banal. E mais: dá pra pensar em coisa
mais idiota, p. ex., que o tal do sexo virtual? Como é possível essa coisa chamada
sexo, sem contato físico? Sem cheiro, sem toque, sem pegada? Ulpiano estava
certo, quando me indicava que boa parte do comportamento humano na atualidade é
objeto da etologia e não apenas das ciências sociais ou da psicologia. E olhe
que nessa época a Internet ainda nem tinha começado, pois o TCP/IP existia
somente nos laboratórios das universidades e nos grandes computadores das
forças armadas americanas.
A tão propalada “democracia
virtual”, que tanto comemoramos nos idos da década de noventa, começa agora a
demonstrar-se uma bela de uma falácia. Ou será que não dá pra reparar que o Windows
é programado de forma ao usuário não ter nenhuma vontade própria? Quantas não
são as rotinas que se processam em segundo plano sem que o usuário possa se
aperceber disso? Tudo remete para a rede. Um monte de links ocorrem sem a nossa
permissão e coletam informações das nossas máquinas e informações pessoais e
mandam para Microsoft e para os sites dos fabricantes dos “programas gratuitos”.
E desde quando existe alguma coisa de graça na sociedade capitalista?! Nem o
Bolsa-Família é de graça, por eleitoreiro que é.
Vejo máquinas por
aí, cujos navegadores estão infestados daquelas barras de tarefas que os
programas instalam. Um monte de inutilidades que nada mais fazem do que onerar
os processamentos da máquina, fazendo links desnecessários, ao mesmo tempo em
que gravam no inconsciente do usuário aquele monte de logomarcas dos
fabricantes dos programas. E o usuário deixa, apesar da opção de não instalação
que o programa oferece, apenas por razões legais. E, por isso mesmo, não
adianta reclamar, porque o usuário deixou durante a instalação. Só não se
observa que aquela opção entra default,
e o Zé Mané Digital não pára para prestar a menor atenção e consente. Agora me
digam: tem coisa mais reacionária e arbitrária do que essa história de você
simplesmente passar o ponteiro do mouse em cima de um ícone e ele imediatamente
fazer um link? Subtraem em absoluto a nossa liberdade de escolha e ainda chamam
a isso, eufemisticamente, de “melhoria da experiência do usuário”.
O Windows não é apenas
um sistema operacional: é, sobretudo, um sistema perverso de dominação social.
Assim não fosse, o programa travaria e te impediria de utilizá-lo tão logo detectasse
sua instalação pirata. E aí me pergunto? Por que será que o WinXP começou a
carimbar os usuários domésticos com o alerta de software não original, logo após o presidente apedeuta ter esnobado
o Bill Gates em Davos? E sob o argumento de uma opção pelo software livre que jamais se efetivou sequer no serviço público. E
o Projeto do Linux Kurumin tornou-se objeto da elite digital... Mas é bem
verdade que o carimbo de software
pirata passou a acontecer pelo mundo afora, numa eficiente indução à compra
daquela mercadoria única, um único sistema operacional que dominou a maior
parte do planeta. Será que nunca repararam que as atualizações automáticas
entram default? Mais um eufemismo:
recomendáveis. E a condenação do Megaupload? Terá sido isso tão democrático
assim? A este respeito eu vi muito mais piadas do que indignações, quando
proibiram o maior acervo de informações digitais que jamais existiu.
Agora a Internet chegou
aos nossos aparelhos celulares, essas coleiras eletrônicas que tomam horas do
dia de uma pessoa. Estamos plugados no Facebook vinte e quatro horas por dia.
Ocupamos nossa mente com baboseiras na maior parte do tempo em que estamos sob
estado de vigília. Ao dormir, sonhamos com isso. É um tipo de virtualidade da
virtualidade. O que Étienne de La Boétie observou quase quinhentos anos atrás e
o que Jean François Brient tentou nos alertar recentemente, soa para muitos como
algo maçante, pessimista, meio down. As
mensagens de auto-ajuda são mais legais, pois tranqüilizam e aprisionam de
maneira dócil, gentil. Vivemos a servidão mais voluntária de todos os tempos: as
pessoas preferem o medo à indignação. Ainda no primeiro governo do apedeuta, o
medo sobrepôs-se à esperança e o povo brasileiro resignou-se à violência e à
corrupção. Muito mais poderia escrever sobre tudo isso, mas prefiro ficar por
aqui, com a sensação de que já falei demais. Eis porque, prefiro me indignar.